Alice Vieira
a) 2
como dizer aos meus olhos que se afastem
do incêndio que lavra a oriente do teu sangue
rasgando a minha fome
e me protejam nesta imperfeita madrugada
em que as línguas dos homens e dos anjos
se confundem
b) 1
de tudo o que era meu deixo-te o fogo
os resíduos do tempo a ferida gangrenada
o palato onde a língua se desvenda
nos ritos obscuros da morte
deixo-te ainda o declínio dos lugares
onde as vozes amadas se perderam para sempre
e o eco das palavras desgarradas ao meio-dia
quando os cães ladravam
no calor dos pátios clandestinos
- e aquele estranho lugar no coração
aberto sempre a quem chegava mesmo quando
não sabíamos o seu nome
c) 5
a língua sobre a pele o arrepio
os teus dedos nas escadas do meu corpo
as lâminas do amor o fogo a espuma
a transbordar de ti na tua fuga
a palavra mordida entre os lençóis
as cinzas de outro lume à cabeceira
da mesma esquina sempre o mesmo olhar:
nada do que era teu vou devolver
d) 6
entre a saliva e os sonhos há sempre
uma ferida de que não conseguimos
regressar
e uma noite a vida
começa a doer muito
e os espelhos donde as almas partiram
agarram-nos pelos ombros e murmuram
como são terríveis os olhos do amor
quando acordam vazios
Fonte: excertos de Dois Corpos Tombando Na Água
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